Thursday, May 19, 2005

Lei da força X força da Lei

Ninguém é o detentor último da lei da força, mas todos podemos ser detentores da força da lei.

Entrevista concedida por Avi Shlaim a Sílio Boccanera

Mensagem enviada originalmente em 08.05.2005, às 03:32:39
Entrevista concedida por Avi Shlaim a Sílio Boccanera
Sílio Boccanera - O sionismo, historicamente, se refere ao movimento de libertação de Israel, do povo judeu, tendo Israel como um conceito territorial. Mas o senhor diz que o sionismo hoje virou o inimigo dos judeus. Como assim?

Avi Shlaim - O sionismo é o movimento de libertação dos judeus. Os judeus são um povo e têm direito a um Estado como qualquer outro povo. Eu jamais questionei a legitimidade do sionismo ou do Estado de Israel. O que eu questiono muito abertamente, minhas objeções são ao projeto colonial sionista a partir dos anos 40, à ocupação sionista da Cisjordânia e Gaza. A ocupação é o problema. A ocupação de terras palestinas leva ao questionamento da legitimidade de Israel. Nesse sentido, o sionismo hoje, o Estado de Israel hoje, é o verdadeiro inimigo dos judeus de toda parte, por ser visto como um poder colonial, opressor, que nega aos palestinos o direito à sua soberania nacional.

SB- Há um grupo de ultranacionalistas, de religiosos radicais em Israel, que apoia em grande parte o governo atual. Em que eles acreditam? O que querem?

AS- Existem duas nações, árabe e judaica, num só território; por isso, há conflito. A única solução para o conflito é a separação. Os esquerdistas de Israel aceitam essa idéia, aceitam a necessidade de um Estado Palestino. A direita de Israel, os partidos religiosos e os ocupantes da Cisjordânia e de Gaza rejeitam a divisão de território. Eles se referem à Cisjordânia como parte integrante das terras de Israel, e se referem ao território pela denominação bíblica: Judéia e Samaria. Para eles, Judéia e Samaria fazem parte das terras de Israel, ou seja: é território que pertence ao povo judeu por desígnio divino. Eles consideram qualquer governo que tenha intenção de abrir mão de parte desse território como sendo ilegítimo. Eles não aceitam que o governo atual tenha obrigação de negociar um acordo para o conflito.

SB - Quanto aos ataques e outras manifestações contra os judeus, sobretudo na Europa, são, a seu ver, expressões do velho anti-semitismo, ou há algum dado novo?

AS - Há elementos do velho anti-semitismo. Vemos muito do anti-semitismo clássico, muito do ódio racista contra os judeus, mas há também um novo componente anti-semita, que não tem a ver com ódio aos judeus, mas é um antisionismo: a raiva sentida por muita gente decente, sem qualquer bagagem anti-semita, por causa do tratamento dado por Israel aos palestinos. O anti-semitismo combina sua forma antiga ao anti-sionismo. Se tivéssemos que determinar a proporção de cada um na formação desse novo anti-semitismo, eu não saberia dizer qual é. O que
eu sei é que há muita gente decente que anda revoltada com Israel por causa das atitudes do país, não por causa da etnia.

SB - Falando não em racismo, mas em discriminação: o senhor acha que é há discriminação contra não-judeus, mesmo cidadãos israelenses, dentro de Israel?

AS - Essa é uma questão à parte. Israel tem uma população de seis milhões de pessoas. 1,2 milhão são de israelenses árabes, cerca de 1/5 do total. Eles têm direito ao voto e participação política, mas são “cidadãos de segunda classe”. Sofrem discriminação de diversas maneiras. Por exemplo: israelenses árabes não servem o Exército. E muitos privilégios dos cidadãos israelenses estão ligados ao serviço militar. Se você quiser fazer uma hipoteca e for israelense árabe não terá servido o Exército e não poderá pedir a hipoteca. Há discriminação contra os de origem árabe.

SB - O senhor faz muitas críticas duras, não só relacionadas a essa questão, a Israel. Mas quando um não-judeu diz as coisas que o senhor diz, é comum que seja acusado de anti-semitismo. Por que isso acontece? Por que determinados círculos em Israel não aceitam que uma postura crítica não seja necessariamente anti-semitismo?

AS - Israel nunca esteve aberto a críticas. A máquina de propaganda israelense sempre tachou qualquer crítica de anti-semitismo. Mas é mais difícil impor a alguém como eu, um israelense criado em Israel, que serviu o Exército, a acusação de anti-semitismo. A minha posição é melhor que a de um não-judeu para fazer críticas. Mas, dito isso, há muitos não-judeus com críticas a Israel que mantém suas posições e não deixam de dizer o que têm a dizer, sobre as posturas israelenses, temendo insinuações de anti-semitismo.

SB - Outra questão polêmica no âmbitos das relações árabes-israelenses hoje é o muro que vem sendo erguido nas zonas ocupadas, sob o pretexto oficial de que visa proteger israelenses do terrorismo. O senhor concorda com ele?

AS - Não, não é assim que eu vejo o tal muro de segurança. Para mim tem mais a ver com tomada de território do que com segurança. O muro cria dificuldades terríveis para os palestinos vivendo na região. Eles perdem suas terras, seus lares... E o muro separa não só judeus de palestinos, mas palestinos de palestinos. O muro é uma linha arbitrária que isola povoados de suas escolas, fazendeiros de suas terras. E seu propósito, a meu ver, é tornar a vida insustentável para os palestinos e forçar a sua saída. Não é uma expulsão direta, mas é indireta. Esse é o objetivo.

SB - O senhor e colegas seus ganharam prestígio entre os historiadores por oferecerem novas visões de fatos que foram registrados na História de Israel, apenas segundo sua versão oficial. Não vou voltar até os tempos bíblicos agora, mas vamos nos concentrar nos anos 40, uma década-chave, nos períodos anterior e posterior à criação do Estado de Israel, De forma breve, o que diz a narrativa oficial sobre essa época que os senhores destrincharam?

AS - Grande parte da discussão entre os antigos historiadores e os novos, gira em torno do ano de 1948, o ano da criação de Israel e da primeira guerra árabe-israelense. A versão sionista oficial mostra um Israel heróico, um bastião da moralidade, diante de árabes predatórios que atacavam sem motivo justificável, além de expulsar os judeus. Eu, como historiador, considerei os argumentos de ambos os lados,examinei a todos, fui aos arquivos, li os documentos oficiais, e tirei minhas conclusões. E elas divergem da historiografia oficial; por isso, eu e o grupo somos conhecidos como “novos historiadores” ou “historiadores revisionistas israelenses”.

SB - E quais os pontos-chaves em que o senhor inverte a narrativa oficial?

AS - Nós temos alguns pontos de discordância com relação à narrativa corrente. Um deles é o papel da Grã-Bretanha. A História diz que a meta britânica era evitar a criação de um Estado judaico. Nós dizemos que os britânicos aceitavam a inevitabilidade do Estado judaico, mas abortaram o nascimento de um Estado palestino em 1948. Em segundo lugar, na guerra de 1948, em terras palestinas, os judeus estavam em maior número do que todas as tropas árabes reunidas, e, de certo ponto em diante, tiveram mais armas também. Nessa guerra, como em todas as outras, o lado mais forte venceu. Não houve milagre. O terceiro ponto são as metas árabes. A História oficial diz que todos os árabes, em 1948, tinham um objetivo claro: expulsar os judeus e sufocar o Estado nascente. Para nós, embora tenha ocorrido uma coalizão
árabe, não havia metas em comum, e cada nação árabe tinha interesses próprios. Nenhuma delas fez nada em prol dos palestinos. As grandes vítimas não foram os judeus, foram os palestinos.
O quarto ponto, e talvez o mais polêmico, trata da origem do problema dos refugiados palestinos. Para a História tradicional, os palestinos se retiraram por vontade própria e seguindo ordens de seus líderes, na expectativa de um retorno vitorioso. Para nós eles não partiram por vontade própria, mas foram expulsos. Houve muitos motivos que levaram ao problema dos refugiados, mas a responsabilidade por expulsá-los foi de Israel.

SB - Esse último ponto implica em conseqüências práticas na atualidade: partir por vontade própria é uma coisa, mas se foram expulsos, isso cria, ao menos em tese, a possibilidade de quererem as terras de volta.

AS - Esse é o motivo para Israel se recusar a assumir qualquer participação no problema dos refugiados desde 1948 até hoje. Eles acham que assumindo a responsabilidade terão que lidar com as conseqüências do problema, oferecndo uma compensação ou o direito de retorno aos refugiados. Não é assim que eu penso. A meu ver, a criação do Estado de Israel envolveu uma injustiça tremenda com os palestinos, e isso é fato consumado e irreversível. Eu não pediria que Israel assumisse responsabilidade política ou legal pelo problema dos refugiados, mas que simplesmente aceitasse o seu quinhão de responsabilidade moral, que admitisse para os palestinos que eles foram injustiçados e ajudasse a buscar soluções práticas hoje.

SB - Houve violência para expulsar os árabes na época? E, se houve, quem a cometeu?

AS - Essa questão é complexa, e o melhor livro sobre o assunto é o de Dan Morris, sobre o problema dos refugiados. Ele mostra que não houve um plano-mestre de expulsão, mas uma tendência entre as lideranças, de tentar criar um Estado judaico mais livre possível da presença
árabe. Muitas iniciativas partiram de comandos locais, sem ordens superiores para a expulsão de palestinos. O quadro é complexo e houve muitos motivos para o problema dos refugiados. Mas o fator principal foi a pressão israelense nos âmbitos psicológico, político e militar.

SB - Seu livro publicado no Brasil, “A Muralha de Ferro”, apresenta esse conceito. Eu gostaria que o senhor o explicasse e dissesse como o governo trabalhista de Rabin tentou transcendê-lo?

AS - A discussão entre historiadores tradicionais e novos é sobre os eventos do ano de 1948. Em “A Muralha de Ferro”, estendo a minha análise da política israelense quanto ao conflito aos primeiros 50 anos do Estado de Israel, de 1948 a 1998. O título vem de um artigo de 1923, escrito por Ze’ev Jabotinski, líder espiritual da direita israelense. Ele fez uma análise correta, ao dizer que os palestinos são uma nação, e nação alguma jamais cedeu voluntariamente território, e que, portanto, os árabes não aceitariam o Estado judaico. Sendo assim, o acordo seria inatingível. A única maneira de realizar o projeto sionista seria unilateralmente, com o uso da força, construindo uma muralha de ferro de força militar judaica para deter os palestinos e forçá-los a aceitar Israel como uma realidade. Mas Jabotinski propunha uma segunda fase. A primeira seria erguer a muralha, e a segunda envolvia negociação. Depois de os palestinos abandonarem a esperança de se livrar de Israel, viria a fase 2: negociar com os palestinos...

SB- É nessa etapa que entra a participação da Rabin. Ele comandou a transição para essa segunda fase.

AS - É exatamente aí que entra Yitzhak Rabin: foi o primeiro líder israelense a passar da fase 1 para a fase 2 da estratégia, a transcender a muralha de ferro e procurar os palestinos na arena política para propor um trato. Isso foi feito nos acordos de Oslo e, infelizmente, representou só um breve intervalo na longa história da muralha de ferro.

SB - Mas Rabin foi assassinado, o Partido Trabalhista perdeu poder e, de Netanyahu e Sharon, vimos uma volta à fase 1, num certo sentido. Mas pensando em Oslo e no que houve desde então, até o último encontro em Camp David, no governo Bill Clinton, entre Yasser Arafat e Ehud Barak, o que saiu errado?

AS - É uma história trágica. A cúpula de Camp David, em julho de 2000, foi projetada para gerar um acordo final entre as partes, mas esse nãofoi atingido. E as duas lideranças foram responsáveis por isso. Barak por suas expectativas totalmente irreais, por exigir o final sumário de qualquer conflito. Ele queria que Arafat assinasse uma garantia de que os palestinos não fariam mais demandas. Arafat teve sua parcela de culpa por não apresentar não apresentar nenhuma contra-proposta. Ele simplesmente disse “não” para tudo, numa postura de rejeição. A cúpula fracassou. Quanto a por que o processo de paz de Oslo falhou, há duas versões: uns dizem que estava fadado ao fracasso do início. Eu não concordo. Foi uma iniciativa modesta, mas razoável para começar a resolver o problema. O que aconteceu foi que Israel, sob a liderança do Likud, se apegou somente ao lado israelense, principalmente ao continuar a ocupação. De Oslo poderia ter saído uma solução. O problema foi que governos israelenses, do Partido Trabalhista e do Likud, continuaram a ocupação depois de Oslo, e isso não fazia sentido. Você não pode avançar rumo à solução política do conflito com os palestinos se continua confiscando terras e expandindo a ocupação na Faixa de Gaza.

SB - Partindo da sua perspectiva histórica para olhar o futuro das relações árabes-israelenses, vemos uma dinâmica interessante: há poucos anos, os palestinos não reconheciam o direito de existência de Israel. Hoje, exceto por alguns grupos radicais, eles aceitam. Da mesma maneira, do outro lado: Golda Meir chegou a dizer : “o povo palestino não existe”. Ninguém faz mais declarações assim. A maior parte dos israelenses parece ver a necessidade de dois Estados na região, assim como a maioria dos palestinos. É um tremendo progresso, historicamente. Com isso em mente, que esperanças o senhor tem?

AS - A conclusão lógica de Oslo é a solução dos dois Estados. Em tese, o governo de Sharon aceita essa solução, mas, na prática, está tentando consolidar o domínio israelense no território, deixando para os palestinos, enclaves na Cisjordânia que não formariam um Estado palestino viável. Hoje estamos numa fase de transição. A intifada está perdendo força, e temos o novo líder palestino, Mahmoud Abbas, que sempre foi da linha moderada, partidário da solução dos dois Estados, e que critica o uso da violência. Abbas reconquistou todo o apoio e simpatia em nível internacional que Arafat havia perdido. Os palestinos hoje estão numa posição melhor, e querem negociar a solução dos dois Estados. O principal obstáculo a ela continua existindo, e é Ariel Sharon. Mas como temos um bom líder palestino, fruto de uma eleição, num sistema democrático legítimo em funcionamento, posso dizer que hoje vejo um ponto tênue de luz tremulando no fim do túnel.

SB - Muito obrigado.

AS - Obrigado.