Monday, April 25, 2005

Verdade: aletheia, veritas ou emunah?

Mensagem originalmente publicada na Internet à 01:05, do dia 04/04/2005

Na Grécia clássica a expressão phronésis designava sabedoria. Phronésis estava sempre associada a outras duas palavras: aletheia (verdade) e eudaimonia (harmonia, felicidade). A sabedoria, pois, só teria o seu sentido completo quando formasse uma triangulação com a verdade e a felicidade.
Parece-me impossível ter phronésis sem aletéia. Ao passo que, tendo phronésis e aletéia, a felicidade, a harmonia são inevitáveis. O triângulo se completa.
Buscar a verdade - aletéia - seria buscar distinguir aquilo que é impressão dos sentidos, o que está impregnado com o nosso arbítrio, com a nossa instabilidade de humores, tudo, enfim, que nos é subjetivamente próprio - do que é produto da razão, onde encontraremos conhecimentos universais, iguais para toda a humanidade.Infelizmente, não é com a aletéia que o direito está comprometido. O direito está comprometido com a veritas dos romanos - que significa “afirmação de um fato”. Ou seja, buscamos a melhor narrativa do fato, e não o fato em si.
Conseqüentemente, o compromisso do direito é com a estabilidade.
E o que é estabilidade? É firmeza, solidez, segurança.
Realmente causa estranheza ver-se buscar firmeza, solidez, segurança com veritas, e não com aletéia.
Parece-me que, assim procedendo, temos alcançado tão-somente a manutenção do status quo, que nada tem a ver, em verdade, com estabilidade. Porque a tão falada e protegida estabilidade é segurança tão-só para uma minoria, cada vez mais reduzida nos tempos de crise; para a maioria da população a manutenção do status quo nada tem a ver com segurança, firmeza, solidez.
Mas no direito o processo busca a estabilidade. E o faz através de ficções. Ficções jurídicas.
A palavra ficção tem significados como: ato ou efeito de fingir; simulação, fingimento. Coisa imaginária, fantasia, invenção, criação.
Bem, como o direito não busca aletéia, mas sim veritas, faz sentido que faça mesmo uso de ficções.
Dentro do direito processual civil, essas ficções buscam estabilizar o processo - o mais rápido possível.
Isso nos faz lembrar da celeridade, hoje tão decantada. Tentam com todo vigor, todo empenho nos fazer crer que buscam-na, mas isso tem sido tão-somente uma forma de “mudar” para manter a mesma situação anterior. Ou seja, faz-se toda uma mise-en-scêne, toda uma encenação para todos pensem que haverá, enfim, uma substancial mudança na situação, não raro, caótica. Mas, trata-se apenas de uma prestidigitação política, econômica ou legislativa para fazer crer à maioria de que atende ao seu clamor, mas que tem como único objetivo continuar mantendo os privilégios da minoria.
Os gregos entendiam a phronesis como a capacidade de lucidez na deliberação, decisão e ação. No sentido de se decidir levando em conta a existência do acaso, da incerteza, do risco, do desconhecido e do complexo, phronesis estaria próxima do nosso conceito de prudência.
Mas a phronesis não se limita a essa idéia latina de prudens, assim como não se confunde com a epistéme (ciência). Pois, enquanto a epistéme se refere ao conhecimento, à erudição e a informação, phronesis está ligada aos sentidos - é a sabedoria prática: é o conhecimento que se adquire através dos sentidos, o saber que se adquire com a prática, com a experiência. Precisamente por isso, etimologicamente, a palavra saber não advém de saber, mas sim de sabor. E é muito fácil entender a razão: nenhuma experiência precisa ter o cientista sobre o que diz, fala ou escreve. O sábio, ao revés, se manifesta sobre o que experimentou. E essa experiência pode ter se dado de formas diversas, mas nunca de modo breve, superficial: a sabedoria advém sempre do que experimentamos, vivenciamos - com profundidade. A sabedoria - como o sabor - é resultado da impressão que nós próprios tivemos ao degustar, ao comprazer de uma emoção, de uma experiência, de uma vivência. Portanto, sabemos profundamente do que se trata - porque foi algo que nós mesmos vivenciamos, que nós mesmos executamos ou estivemos submetidos à experiência. O cientista, com o seu entendimento abstrato ou o seu pensamento discursivo jamais atingirá a plenitude nem igualará o brilho da manifestação de um sábio. Se os artigos científicos são algo insípido, as manifestações dos sábios são saborosas pois o sábio lhes confere sabor ao relatar do que ele mesmo experimentou, vivenciou, saboreou, degustou. Ele não está reproduzindo o relato de outrem que pode lhe ter omitido vários detalhes de sua experiência. Como o sábio fala do que ele próprio vivenciou, suas palavras são profundas, seu relato é rico em detalhes - porque ele não apenas sabe, mas tem a experiência do próprio ato daquilo que é sabido.
Mas aqui devemos ter uma maior acuidade, uma maior agudeza de percepção, pois o verdadeiro é o não-oculto, o não-escondido, o não-dissimulado e que se manifesta não apenas aos olhos do corpo - mas, principalmente, aos olhos do espírito.
Os maiores sábios da humanidade detiveram conhecimento porque viram e disseram a verdade. E onde foram-na buscar? Na própria realidade, pois é quando a realidade se manifesta que a verdade se revela, se descortina.
Independente do relato, da memória, da percepção de cada um a verdade existe e é imutável.
Veritas, ao revés, se prende ao relato e ao enunciado do fato. É a precisão, a exatidão, o rigor do relato que conduzirá à veritas. Para esta o verdadeiro está ligado à linguagem, isto é, à narrativa dos fatos ocorridos, e aos enunciados que, fielmente, dirão como foram ou aconteceram as coisas. A veracidade dos fatos, pois, dependerá da linguagem usada para enunciá-los.
Outra visão têm os hebreus sobre a verdade. Para eles ela se traduz na palavra emunah, que significa confiança. Emunah se aplica às pessoas e a Deus. De sorte que serão verdadeiros, Deus ou um amigo, se cumprirem o que prometeram. Serão verdadeiros, pois, se cumprirem com a palavra dada ou com o que foi pactuado, ou seja, se não traírem a confiança neles depositada. Emunah, cuja origem é a mesma da palavra amém, se dirige ao futuro, pois é a confiança que se alia à esperança do que virá ou será.
Mas a Verdade está além do que esperamos ou confiamos; está além do que nos parece ser o real, o veraz. Porque a verdade independe da nossa razão, da nossa compreensão, do nosso beneplácito. A verdade independe do nosso consentimento, da nossa aprovação: ela é.
O momento da descoberta da verdade pelo ser humano pode dar a qualquer momento - ontem, hoje ou daqui há milênios: não importa. Pois a verdade, para existir, independe do conhecimento que fazemos dela. Num exemplo: independente do que o ser humano pense ou ache a respeito do Universo, o planeta Terra tem o seu próprio formato há bilhões de anos, e o Sol, igualmente, segue o seu próprio curso há muito mais tempo ainda.
A verdade não se adequa ao nosso gosto, nem se amolda à nossa personalidade; nem tampouco fica à espera do nosso conhecimento sobre ela para evoluir, para seguir o seu curso. Nós é que temos de persegui-la se quisermos viver em harmonia com o Universo.
Há leis que regem a vida no planeta Terra - saibamos quais são elas ou não, aceitemo-nas ou não. Conhecendo-as e vivenciando esse conhecimento viveremos melhor, muito melhor.
Se, ao revés, decidirmos que o mais importante é escolhermos qual o melhor enunciado para essas leis, qual o que mais se adapta e favorece os nossos interesses - seremos esmagados pela verdade - como centenas de civilizações já o foram nos milhões de anos de existência do homem no planeta.
Ninguém jamais teve ou terá o controle da verdade. Quem assim pensou enganou-se a si mesmo. Quem, em suas meditações graves, em suas profundas cogitações pensou ter o controle da verdade, o controle da enunciação dos fatos, de como serão eles conhecidos, engana as populações a médio e longo prazos, mas causa um maior prejuízo a si mesmo, porque em verdade esteve a se enganar a curto, médio e longo prazos.
Ninguém pode deter a força da verdade, ninguém pode escravizá-la ou aprisioná-la, pois enquanto temos certeza de que ela está encoberta, e de que ninguém a descobrirá; enquanto a refutamos ou obrigamos quem já a conhece a desmentir a realidade da sua existência (como fez a Igreja Católica Apostólica Romana com Galileu), a verdade permanece. E quando se torna evidente a todos, evidencia também a falsidade de quem tentou encobri-la , de quem não quis aceitá-la.
Desgraçadamente, o homem, ao vislumbrar os preâmbulos da ciência, já se considera um deus, e crê que só ele é capaz de pensar - em todo o Universo. Iludido por essa crença, embasada em sua ainda inesgotável ignorância, o homem acaba por se conceber como mais importante do que todo o Universo. Claro que quando paramos de olhar para os nossos próprios umbigos, erguemos as nossas cabeças e presenciamos a grandeza de céu, começamos a ter desvanecida essa nossa ilusão, e a perceber que um grão de areia aqui na Terra pode ser muito mais importante do que toda a humanidade para o Universo.
Qual o valor de sermos seres pensantes se usamos toda a nossa capacidade cognitiva e intelectiva muito mais para a destruição do que para construir o nosso bem-estar, a nossa felicidade?
A verdade é o que dá sentido à existência humana, só que, efetivamente, ainda não nos demos conta disso. Parece mesmo que nem ao menos conseguimos vislumbrar a importância da verdade, não só para nossa existência, como para atingirmos a tão almejada felicidade.
Querer dominar a verdade, querer enquadrá-la, controlá-la, desvirtuá-la de alguma forma, moldá-la aos padrões de uma determinada sociedade ou de uma determinada classe é desiderato dos loucos. Sim, claro que há quem afirme que podemos substituir uma verdade por outra, que os poderes humanos estabelecidos podem destruí-la. Mais isso não foi possível nem para a mais poderosa organização humana de todos os tempos: a Terra continuou girando em torno do Sol e tendo o seu formato próprio. Conseqüentemente, o que pode ser modificado ou destruído é sempre a nossa ignorância - jamais a verdade.
Porque assim é a Verdade: incontestável, inigualável, irrefutável, independente e eterna - apesar da vontade de qualquer ser humano - ocupe ele a posição mais proeminente na sociedade - mesmo assim, sobre ele reinará sobranceira a verdade, tendo o controle total de tudo e de todos.

2 Comments:

Blogger José Luiz de Campos Castejón Branco said...

Sua postagem me foi extremamente útil, sem dúvida, pois estou fazendo um mestrado e precisei distinguir termos como 'aletheia' e 'veritas'. 'Emunah' eu desconhecia, muito bom! Pois bem , blogs também podem ser culturais e isso é fantástico. Abraços.

10:25 AM  
Blogger Ricardo Vieira said...

É justamente a crença em uma verdade "incontestável, inigualável, irrefutável, independente e eterna" que caracteriza a pretensão de domínio e controle sobre a verdade que você estava a criticar. Esse sentido de verdade como controle - que pertence ao nosso tempo da tecnociência e deriva, não sem muitas vicissitudes históricas, da veritas latina - está muito distante do sentido grego de alétheia. Neste, ressoa o mistério intrínseco à verdade, como sentido originário de sua possibilidade autêntica de transformação histórica. Evidentemente não se trata de uma transformação arbitrária - a idéia de verdade como arbitrariedade, tanto quanto a concepção dogmática de verdade (por paradoxal que possa parecer) deriva igualmente de uma compreensão profunda de verdade como domínio, controle, certeza. "Descobrir" a verdade ("alétheia"), não significa se empenhar pela aquisição de um saber constituído e absoluto, mas pelo movimento de transformação mais profundo e honesto. Espero haver contribuído para o diálogo com teu texto!

8:23 AM  

Post a Comment

<< Home