Monday, April 25, 2005

Qual o papel do advogado na sociedade brasileira

Mensagem originalmente publicada na Internet às 19:48, do dia 24/03/2004)

A idéia do direito germinou na consciência do homem porque este vive em sociedade. Mas em sociedade também vivem várias outras espécies animais. Por que, então, a sociedade humana teve necessidade de fazer surgir o direito? Certamente por haver na humana fatores inexistentes nos outros tipos de sociedade animal.
Segundo Hermes Lima, "se não houvesse produção de bens, a sociedade humana seria semelhante à dos animais". Mas, obviamente, não só o fato de produzirmos bens nos diferencia das outras espécies animais. Certas espécies da fauna produzem habitações, como, por exemplo, o joão-de-barro, que muito se assemelham a certas construções humanas. Só que, uma vez cumprida a destinação do "imóvel", não há mais disputas sobre ele. Nenhuma outra espécie animal transformou em fonte de disputas intermináveis, cruentas e perigosamente desestabilizadoras de toda a sociedade - a terra, o ouro, o petróleo. Nenhum outro animal cria formas (inumeráveis, intermináveis, inimagináveis) de fraudar o seu semelhante. Também nenhuma outra espécie animal mata com tamanha avidez: o homem, não raro, mata sem necessidade, sem motivo. A espécie humana se esmerou em construir artefatos para matar com maior eficácia, para eliminar um número cada vez maior de vítimas. Felizmente, por um lado, e, infelizmente, por outro, só o homem criou e lançou uma bomba como a atômica, aniquilando, em poucos segundos, centenas de milhares de seres de sua mesma espécie; só o homem se orgulha de ter construído - e utilizado - a "mãe de todas as bombas"...
Essa nossa excessiva beligerância, esse nosso apego extremado aos bens materiais, esse nosso egoísmo por acumulá-los fez surgir em nossa sociedade problemas que, em outras, ou inexistem, ou existem em escala muitíssimo reduzida. Sabemos, por exemplo, que existem disputas por poder, por demarcação de território, por parceiras para acasalamento, por comida etc., nas várias sociedades animais - mas não com a gravidade, com a escalada verificada entre os humanos. Somos seres, eminentemente, sociais, mas a nossa convivência tem sido bastante marcada por graves conflitos, que clamam por solução.
Naturalmente, o estudo das personalidades que marcaram a história humana, nos dá exemplos, à saciedade, que se há homens vis, também há os de nobres sentimentos; se há os eternos trogloditas, há os que, na vanguarda, trazem, em todos os séculos, verdadeiro progresso para toda a humanidade. Assim, exatamente por ser o homem capaz de ações extremas - seja de impiedade, seja de misericórdia; por ser capaz de desenvolver idéias complexas, tanto para o bem quanto para o mal; exatamente por existir personalidades que se antagonizam - e principalmente, por haver entre os indivíduos interesses que se adversariam, o homem, esse ser pensante, desde tempos remotos vem desenvolvendo várias formas de, senão extinguir os conflitos, pelo menos diminuir a sua ocorrência ou dar-lhes uma solução que pacifique as relações sociais. As tentativas são muitas, seja através das normas de religião, da moral - seja através do direito.
O homem é fruto do meio em que vive. Na verdade, sem viver em sociedade o homem não evoluiria, pois é no convívio com seus semelhantes que molda o seu caráter, que experimenta as mais variadas e contraditórias emoções, que se surpreende com reações insuspeitadas, como heroísmo - ou covardia -, que desenvolve as boas e más qualidades: a da paciência, por exemplo, complexa por excelência, só pode ser desenvolvida e testada no convívio com outros homens - pois é muito fácil ser paciente, sozinho, no cume de um longíquo monte; difícil, para muitos - dificílimo -, é ser paciente num trânsito caótico, por exemplo; por outro lado, a desonestidade não se revelaria se o homem vivesse solitariamente.
O pensamento é, pois, resultado das relações sociais: quanto mais estas se intensificam, mais aquele evolui e aprofunda-se. E foi graças à sua inter-relação com os outros indivíduos, que o homem criou a palavra, e toda uma linguagem (que engloba a articulada, a escrita e a gestual) para externar o seu pensamento. Vivesse ele isolado, nem o seu pensamento evoluiria, nem a palavra teria razão de ser criada.
Ao criar a palavra, o homem pode externar o seu pensamento. E a linguagem foi se tornando mais precisa na medida mesmo em que o homem mais necessitou explicitar as suas idéias.
Com o advento da palavra escrita, tornou-se possível, não apenas a eternização de um pensamento, de idéias, mas a discussão sobre este pensamento, sobre estas idéias. Muitas vezes, um texto escrito tornou o entendimento sobre a realidade mais claro, tornou o debate mais objetivo: foi assim, por exemplo, que, a partir da Ilíada e da Odisséia de Homero, e da Teogonia de Hesíodo, registros poéticos de tradições e lendas, que os gregos antigos puderam-nas melhor compreender e questionar - o que os levou à ruptura com o pensamento mítico.
Por conseqüência, é graças a estar vivendo em sociedade, a estar se inter-relacionando com outros seres, sejam eles humanos ou de outras espécies do reino animal, que a espécie humana tem tido grandes, incontáveis e sempre renovadas chances de evoluir, de progredir.
O direito é ciência complexa pois nele há raízes psíquicas, sociais, econômicas,culturais, religiosas, além da memória de todas as experiências acumuladas durante a história da civilização.
Através da sua própria história, cada grupo social desenvolve valores éticos particulares: o que é justo ou injusto, o que é profano ou sagrado pode diferenciar-se e mesmo antagonizar-se de um povo para outro, de uma nação para outra. Um exemplo disso é o adultério: enquanto em algumas sociedades é tolerado, e até ignorado; em outras é inaceitável e passível de pena de morte.
O objetivo do direito é livrar-nos, tanto quanto possível, da arbitrariedade, da tirania, do caos: é pacificar as relações sociais.
Mas sendo uma criação do homem, traz consigo as características contraditórias deste, pois ora gera tranqüilidade, ora gera angústia; nele podem ser encontrados subsídios para a obediência ou para a revolta. Nas palavras de Técio Sampaio Ferraz Jr., quando iniciamo-nos no estudo do direito,entronizamo-nos "num mundo fantástico de piedade e impiedade, de sublimação e de perversão, pois o direito pode ser sentido como uma prática virtuosa que serve ao bom julgamento, mas também usado como instrumento para propósitos ocultos e inconfessáveis". Isso é algo que ocorre - não exclusivamente com o direito - porquanto o uso das coisas, das ciências sempre dependerá do caráter de quem deles se vale. Como impedir que criminosos invoquem trechos da Bíblia - como o "sê fiel até à morte,..." para justificar sua fidelidade à vida de transgressões? No campo das invenções, como impedir, por exemplo, que o avião tivesse uso bélico? O homem se deparou, então, com a necessidade de, não só elaborar normas: por serem estas transmitidas por palavras, urgirá que venham a ser interpretadas. Ou seja, é preciso não só informar sobre qual é a norma, mas também qual é a sua interpretação, para coibir, para reduzir ao máximo as tentativas de sua distorção. Contudo, não será qualquer interpretação considerada válida: válidas serão, aquelas que resultarem de uma argumentação que respeite os padrões dogmáticos. Mas não tão-somente estas: a moderna hermenêutica torna claro e evidente que a interpretação lógico-gramatical dos textos legais vigentes, a análise puramente literal destes não mais se coaduna com os reclamos da vida hodierna, mutável como nunca, onde a cada dia, a cada hora novas situações se delineiam, exigindo por parte do operador do direito - criatividade.
Preferimos usar o termo criatividade, ao revés de imaginação, pois este nos remete ao mundo da fantasia, da lenda, da ilusão, e não estamos querendo reeditar o pensamento mítico.
Já criatividade nos dá a idéia de "dar origem", "formar", "gerar" - um direito repessoalizado que dê a cada ser humano, esteja na situação em que estiver, condições de ter respeitada a sua dignidade como pessoa humana.
Cada ser humano é único, e algumas vezes se vê envolvido em situações únicas que urgem o operador do direito buscar "a finalidade social da norma", buscar uma solução inovadora visando que sejam assegurados, também àquele que vive uma situação singular, direitos e garantias constitucionais.
Para ser criativo, entretanto, o nosso profissional da advocacia tem de se manter atualizado: não só informado - mas, antes, bem informado - ou seja, de posse plena do entendimento exato daquelas informações, para que possa dar-lhes a interpretação devida.
Sobre o assunto, citamos aqui o Professor Pasquale Cipro Neto: "recentemente, grandes figuras de nossos jornais e revistas escreveram sobre relatórios que apontam a grave situação do Brasil no que diz respeito à compreensão de textos. Não sabemos ler. Lemos e não entendemos. Lemos e entendemos o que queremos. Raciocinamos como ostras e montamos relações lógicas absurdas". Infelizmente, trata-se de uma deficiência que, advém de uma falha educacional iniciada nos níveis básicos do ensino; mas, que verificada entre os profissionais do direito, torna-se agravada por ser a palavra - primordialmente - a mola mestra da profissão. Urge, ainda ao operador do direito buscar aperfeiçoamento profissional em cursos de especialização,palestras, seminários e manter-se receptivo, aberto aos caminhos jurídicos inovadores. A sabedoria só liberta quem a vivencia, quem dela tenha perfeita compreensão, quem dela faça aplicação. Dizia Maquiavel, famoso filósofo italiano, que ao homem público em geral, não bastava ser honesto: tinha que parecer honesto. Ousamos afirmar que, nos tempos atuais, não basta mais parecer sábio, parecer honesto - urge que, efetivamente, o seja. Porque, lembrando as palavras de nosso ilustre concidadão Rui Barbosa, durante séculos, vimos triunfar as nulidades, vimos crescer as injustiças; vimos também agigantar-se o poder nas mãos dos maus, dos corruptos. Mas, hoje, em pleno século XXI, estamos mais do que cansados de desanimar da virtude, de rir da honra - e de ter vergonha de ser honesto. Porque o Mal é o Mal, e, jamais, transformar-se-á em Bem. E o Mal não é nefasto apenas para o Bem: vivendo tão-só da negação, mesmo que, em determinado momento, aparentemente tenha encontrado a vitória, o Mal termina por destruir-se, pois em si mesmo não encontra subsistência. A ignorância, a injustiça, a corrupção, o amor às transgressões, a desonra, a desonestidade nunca mais trarão dignidade a nenhum ser que se intitule humano.
Porquanto dignidade é modo de proceder que infunde respeito, grandeza moral, respeitabilidade, nobreza, honra. E se o princípio maior constitucional é o respeito à dignidade da pessoa humana, para difundí-lo, para fazer com que atinja a todos os cidadãos, o cientista do direito tem de tê-lo promovido, primeiramente, em seu interior - pois os maiores casos profissionais que lhe chegarão às mãos, exigirão dele, primordialmente, aquelas qualidades. Serão casos cuja magnitude não será medida pelo valor pecuniário, mas pelo árduo trabalho intelectual para aplicar a norma teleológica e axiologicamente ao caso concreto. Serão o equilíbrio interior, a agudeza de espírito, o senso de justiça, de honra, o desconforto, a ousadia para inovar, a coragem de desafiar os poderosos de época - a fé em Deus, que se transforma em fé inabalável na vitória - que lhe serão exigidos por meses, às vezes, por anos, para que uma causa, que todos achavam irremediavelmente perdida, seja, enfim, ganha. Desencastelar-se, manter proximidade aos anseios do povo, saber ouví-lo, entender, compreender, apreender as suas necessidades, estar profundamente ligado às realidades concretas tornarão o nosso digno causídico dono da sabedoria real, que palpita nas ruas, nas casas, em toda a cidade, em todo o país. Livrá-lo-á do embotamento da sensibilidade de que nos falou San Tiago Dantas.
Sendo o direito ciência do espírito urge que com espírito seja operado, isto é, com ânimo, com coragem, com bravura, intrepidamente; com ímpeto, com ousadia, com vitalidade, com uma mente lúcida, valorosamente, com uma inteligência resplandescente - numa palavra, com denodo.
Só se alcança a verdadeira sabedoria quando se usa os conhecimentos adquiridos na vida, no meio acadêmico - para o bem - de si mesmo e de seus semelhantes. Usar de seu saber jurídico para tramar atos condenados pelo próprio direito, para ser inconfidente com quem em nós depositou toda a sua confiança e esperança - é a mais crassa demonstração de ignorância. O proceder hipócrita de alguns profissionais, visando enganar os desesperados, os necessitados, os incautos, é a mais vil inconfidência.
Mas, em que pese ser esse tipo de comportamento que ganhe destaque na mídia sensacionalista - pois são ainda as más notícias, os escândalos que "vendem" - muitos profissionais hão que dedicaram sua vida inteira para dar ao direito vida e movimento, tornando-o, senão perfeito, tão humano quanto aqueles a quem se destina.
Que sejam estes operadores do direito - que se distinguiram por suas nobres e louváveis qualidades, contribuindo assim para a honradez da profissão - trazidos à lume; que se lhes dê o devido destaque para que sejam - eles - as verdadeiras celebridades da corporação e da sociedade.

1 Comments:

Blogger Isabel Cristina Feijó said...

Boa tarde.
Em que pese teres escrito teu texto em 2004, li-o somente agora.
Muito boas as colocações e com sua licença, vai servir de base para uma apresentação que farei na universidade.
parabéns
abraços
isabel

12:49 PM  

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