Monday, April 25, 2005

Sócrates, o sábio que só sabia que nada sabia

(Mensagem originalmente publicada na Internet às 16:41, do dia 27/11/2004)

Conhece-te a ti mesmo.”

Ninguém como Sócrates insistiu tanto na necessidade de auto-conhecimento. Advertia ele que era preciso elevar-se dos sentidos à unidade conceitual, racional. Sócrates ensinou a procurar o princípio da verdade. Distinguir aquilo que é impressão dos sentidos, o que está impregnado com o nosso arbítrio, com a nossa instabilidade de humores, tudo, enfim, que nos é subjetivamente próprio - do que é produto da razão, onde encontraremos conhecimentos universais, iguais para toda a humanidade. Saber e colocar em prática esse saber foram para Sócrates uma só e mesma coisa - como ciência e virtude - pois esta nada mais é do que a aplicação daquela.
À virtude (aretê) Sócrates identificou o conhecimento. Mas esse conhecimento não é a opinião (doxa), e sim a ciência (episteme). E a verdadeira ciência não será aquela que tem por objetivo a obtenção de prestígio social ou de riquezas materiais, mas a que leva ao conhecimento de si mesmo, de sua própria subjetividade.
Sócrates advertia que não seria buscando o acúmulo de bens e as honrarias sociais que o homem alcançaria a virtude, mas, ao revés, era ao alcançar a virtude que o homem obteria riquezas - inclusive a material.
É com Sócrates que a Ética, propriamente dita, começa. E ele a operou em seu dia-a-dia: ensinou a respeitar as leis, as escritas e as que, mesmo não escritas, são válidas em todos os lugares pois impostas pelos deuses aos homens. Defendeu que o bom cidadão deve obedecer mesmo as leis más para que com a sua desobediência os maus não se sentissem liberados a violar as boas leis.
Contrariamente, o contemporâneo ensinamento sofístico se limitava a uma mera técnica argumentativa, que facilitava a ascensão na vida política de quem já dispunha de poder econômico - pois só estes podiam pagar as suas caras lições. A conseqüência desta era que as decisões políticas na Assembléia ateniense eram tomadas não com base num saber, ou na consideração dos sábios - mas no poder de persuasão dos hábeis em retórica, que raramente seriam os mais sábios ou os mais virtuosos. Os sofistas, portanto, não ensinavam o caminho para o conhecimento - que leva à verdade única; o seu ensinamento estava voltado para a obtenção de um consenso, que resultaria da persuasão.
Sócrates, de forma gratuita, levou a filosofia para a praça pública - a ágora. Aí, onde os atenienses se reuniam, comerciavam, realizam assembléias populares, cerimônias religiosas - e também se administrava a justiça - Sócrates dialogava, transformando a ágora num grande anfiteatro para a busca interior.
Escolhia para seus interlocutores aqueles que ainda possuissem condições psicológicas favoráveis para serem submetidos à ironia e à maiêutica. A ironia era o momento dentro do diálogo em que interlocutor era levado a opinar e provar que realmente dominava o ramo de conhecimento ou de atividade do qual era tido como autoridade. Geralmente Sócrates decepcionava-se, pois, levados a emitir opiniões acerca de sua própria especialidade e, posteriormente, interrogados sobre o significado das palavras por ele empregadas o que ficava patente era tão-somente a ignorância da própria ignorância. Muitas idéias vigentes há séculos e consagradas pela tradição, que orientavam a conduta dos indivíduos e serviam de alicerces às instituições políticas - também revelaram-se formadas por superstições, intolerâncias, opiniões desprovidas de ponderação, que desconsideravam os fatos que as contestavam.
Reconhecido que se ignorava o que, antes, se supunha saber; demolidas as falsas idéias que alicerçavam a falsa imagem que as pessoas tinham de si mesmas, o diálogo socrático assumia caráter de reconstrução com a fase subseqüente chamada maiêutica, ou parturição das idéias, onde o interlocutor-discípulo era levado, através da propositura hábil de questões, a progressivamente tentar conceber - dar, ele mesmo, à luz - suas próprias idéias: assim, indo ao seu próprio encontro, o homem faria de si mesmo o seu próprio ponto de partida. Abandonava-se, assim, a repetição inconsciente de fórmulas consagradas, chavões tradicionais e se era convidado a pensar - tanto no sentido de refletir, raciocinar; quanto no sentido de - curar - a alma. Sócrates, ao exercer a sua atividade pedagógica de forma gratuita e ao não levar em conta fatores sociais ou econômicos, deixando-se guiar tão-só pelo seu daimon no processo de escolha de seus interlocutores, democratizara a sua pedagogia. Ao submeter um escravo à maiêutica de uma intrincada questão matemática, Sócrates demonstrou, publicamente, que o homem, mesmo sob o jugo de condições sociais e políticas que lhe são impostas pela classe que se autoprivilegia - se submetido a um processo educativo adequado - era capaz de compreender e deslindar questões científicas complexas. Sócrates prova assim, que um escravo é, pelo menos na alma, igual a qualquer cidadão - e que todos os indivíduos, de direito, intrinsecamente se assemelham.
Numa democracia como a ateniense, onde ser cidadão era ser um homem pleno e livre, era possuir direitos e garantias sobre sua própria individualidade e seus bens; mas que só concedia esse privilégio da cidadania a quem apresentasse certos atributos e características, como ser homem, filho de - pai e mãe - atenienses, e, principalmente - não ser - mulher, não ser criança, não ser louco, não ser estrangeiro, não ser escravo - enfim, não não ser nada de diferente, nada de estranho. Numa sociedade em que, segundo o censo de Demétrio de Falera: 20.000 eram cidadãos, 10.000 eram metecos (estrangeiros e seus descendentes) e 400.000 eram escravos, Sócrates passou a representar uma denúncia de suas limitações e injustiças e um perigo para os interesses daquela minoria que detinha o poder e excluía a maioria da população dos privilégios.
É por passar a ser visto como um ameaça que Sócrates, em 399 a.C., sofre, por parte de alguns cidadãos atenienses, grave acusação: não reconhecer os deuses do Estado, introduzir novas divindades e corromper a juventude.
A acusação de ter introduzido novos deuses só foi possível porque Sócrates se dissera inspirado por uma divindade - que outra não era senão sua própria consciência. Quanto à acusação de corromper a juventude, Sócrates demonstra na sua defesa que o seu acusador nunca esteve com essa questão preocupado e nem mesmo sabia identificar o que seria bom ou mau para a juventude.
Durante o julgamento Sócrates demonstra publicamente a inconsistência de tais acusações que, inegavelmente, tinham razões políticas,pois o que as determinaram foram as críticas ao que ele creu ser um desvirtuamento da democracia; as discussões e questionamentos feitos durante os diálogos socráticos sobre virtudes, valores morais, senso comum, crenças e opiniões, nos quais, tanto indivíduo quanto instituições políticas se aferravam.
Afora isso, ao desmascarar falsas sapiências e esboroar supostos talentos e prestígios indevidos Sócrates despertou ressentimentos e desencadeou a ira daqueles que queriam manter o status quo, pensando que assim manteriam sua própria estabilidade. Embora a filosofia tenha surgido na Grécia precisamente por ter o pensamento mítico perdido o seu poder explicativo, por terem os mitos gregos se mostrado relativos quando defrontados com os de diferentes povos, a ruptura com o modo mítico de pensar não se fez de modo abrupto nem definitivo. Sabemos que, em pleno século XXI, superstições, crenças, fantasias sobrevivem no imaginário dos povos.
A ignorância prejudica julgamentos e distorce a visão dos fatos. O homem ignorante interpreta as admoestações do sábio como arrogâncias e vê em seu opressor um libertador. Elege este como seu líder - enquanto daquele pede a morte.
Podemos identificar na vida dos mais sábios e destemidos pensadores - como Sócrates e Jesus - que, não raro, a ignorância espera que eles, que se propuseram a nos ajudar a nos libertar desses falsos valores, devam se declarar culpados e pedir desculpas por isso! Sócrates, ao fazer sua defesa, frustra essa expectativa: ironiza seus acusadores, manifesta-se com altaneira independência de espírito, sem bajular ou tentar captar a misericórdia dos que os julgavam - o que é interpretado como... arrogância. Mas sua linguagem é, em verdade, serena; se, objetivamente, não se defende é porque não reconheceu em si e em seus atos nenhuma culpa.
Recusa-se a fazer-se absolver através de rogos e súplicas: o que parece-lhe justo é tentar esclarecer e convencer o juiz. Precisamente por fazer sua autodefesa de forma destemida, mantendo sua independência de espírito Sócrates é condenado. Convidado a fixar sua pena, ele o faz, mas de modo a impedir que os que o acusam falsamente tentem passar para a história como magnânimos ao consentir na continuação de sua existência. Nem exílio, nem multa ou qualquer outra pena moderada: propõe ser sustentado no Pritaneu, o que equivaleria não só ao reconhecimento de sua inocência, como o de ser benéfica e regeneradora a sua atividade pedagógica. Encurralando os juízes entre sentenciá-lo à morte ou recompensá-lo como herói ou benemérito da cidade, Sócrates oferece uma derradeira lição: a de que o caminho para a verdade e a justiça exige humildade e coragem: humildade para reconhecer os erros e coragem para corrigí-los. Mas alguns tipos de ignorância raramente se apartam da prepotência, da arrogância e da covardia. Deste modo, tornou-se impossível para aqueles juízes admitir ser inocente quem realmente o era.
Sócrates decepciona os que têm esperança de que ele, que apontava os erros, as injustiças havidas na sociedade, se humilhe e volte atrás. O filósofo prefere a morte a declarar-se culpado e assim trair a sua própria consciência. Ele que já dera provas do seu destemor em tempos de guerra, tomando parte na guerra do Peloponeso e se destacando pela bravura e por demonstrações de resistência física; salvando a vida de Alcibíades, que mais tarde se tornaria político e militar famoso; salvando a vida de Xenofonte durante a campanha militar em Délio, quando os atenienses foram derrotados pelos tebanos. Ele que sempre mostrara respeito pela lei, lutou para que esta prevalecesse na questão dos Arginusas, quando uma multidão irada exige que os generais sejam sumariamente condenados por não terem promovido, durante uma tempestade, o resgate dos corpos dos que morreram em combate, conforme estabelecia a lei. Sorteado para dirigir a Assembléia que julgaria os generais, ignora as ameaças e faz prevalecer a lei, impondo que haja tantos julgamentos quantos fossem os acusados. Quando o governo dos Trinta Tiranos interrompe a democracia, entre os anos 404-403 a.C., Sócrates nega-se a com eles conluiar-se na sórdida trama para seqüestrar os bens de Leon de Salamina. Destarte, independente da forma de governo, independente do caráter, da índole da autoridade constituída, Sócrates permaneceu fiel aos ditames de sua própria consciência.
Na véspera da sua morte, os discípulos ainda lhe suplicam que aceite a fuga que os amigos haviam lhe preparado. Sócrates, ao se recusar, explica que a única coisa que realmente importa é - viver honestamente - sem cometer injustiça - nem mesmo como retribuição. Fugir, na prática, equivaleria a renegar a todas as idéias que havia vivido e defendido.
A condenação de Sócrates foi, em verdade, uma forma de defesa da democracia ateniense: para se defender dos erros nela existentes - e que ele apontara - ela o condena.
Mas como erros não se podem consertar com outros, a morte de Sócrates não dá conserto nem atenua as limitações da democracia ateniense.
E é interessante observarmos que é exatamente quando busca manter os seus privilégios, quando busca manter o status quo que o faz sentir seguro que o homem ignorante dá início ao processo de destruição de todo esse sistema.
Em verdade, o homem - o pobre homem que desfruta de privilégios nas sociedades de todos os tempos e que ignora a sua própria ignorância e desconhece a si mesmo, acha muito trabalhoso e até mesmo perigoso pensar. Ter a posse de símbolos de poder está arraigado em seu espírito. Ser pouco ou nada importa - o imprescindível é ter. O importante para ele é a continuidade da situação que lhe permita manter aquilo que ele pensa ser a sua estabilidade. Assim, este homem prefere sair a conquistar terras alheias, longínquas, consideradas inóspitas, áridas, cruéis; que lhe ofereçam perigos inesperados, impensáveis; do que desbravar e conquistar sua própria mente. Prefere sair a dizimar populações inteiras, destruir inúmeras cidades, aumentar o seu patrimônio se apropriando, de forma fraudulenta ou violenta, de riquezas alheias; do que dizimar sua própria ignorância, destruir seus conceitos mal formulados e obscuros e tentar ser, ele mesmo, a sua própria riqueza.
O homem ignorante confunde um grande poder de destruição com Onipotência. Mas a Onipotência de Deus não está em sua capacidade de destruição - mas, sim, na de construção e reconstrução. Porque é muito mais difícil construir do que destruir. Destruições que não visam dar lugar a um novo e mais seguro edifício, por exemplo; que geram tão-somente terras arrasadas podem ser levadas a efeito por qualquer ser inferior: na verdade, este, que está abaixo de todos em qualidade, em mérito, em valor - é o mais indicado para efetuar tais destruições.
A única destruição que não está ao alcance de qualquer um é a da própria ignorância. Construir, ao revés, exige saber organizar, dispor, arquitetar; dominar várias áreas do conhecimento; desenvolver, entre várias outras qualidades, a paciência, pois construir requer tempo. Construir, pois, exige sabedoria. Porque, já todos sabemos, conquistar pessoas, subjugar nações é fácil: difícil é manter a conquista; difícil é conter os insurgentes; muito mais difícil é conquistar-se a si mesmo.
Inúmeros conquistadores creram ter sido senhores de verdadeiro poder, dominando povos e nações. Mas, em verdade, apenas vislumbraram ilusões, quimeras. Porque o único domínio real que nos é facultado é o de nossa consciência. Muitos se crêem poderosos por estar em suas mãos a decisão sobre a continuação de existência ou a morte de inúmeros de seus semelhantes. Mas matar é possível a qualquer ser - principalmente aos inferiores. Dar a vida, fazer com que esta retorne a um corpo já dela apartado, inerte é que seria prova de um verdadeiro poder. “Superpoderosos” têm sido capazes de produzir milhões de cadáveres - mas jamais ressuscitaram um morto sequer.
A ignorância é criadora da morte, enquanto a Sabedoria cria, mantêm e restaura a vida.

0 Comments:

Post a Comment

<< Home